quinta-feira, 20 de setembro de 2012

tempo das cartas...



Antigamente, há menos de 30 anos atrás, não havia toda essa parafernália tecnológica de internet, telefone celular, Iphone, Ipad, Ipod e afins, que possibilitam a comunicação rápida e sintética. Lembro-me que minha família foi uma das primeiras a ter telefone no bairro onde morávamos. As ligações eram caríssimas. Usávamos o telefone somente em casos importantes ou de emergência. Mas nem por isso não nos comunicávamos. Os meios eram outros. Isso quer dizer que sou uma mulher do tempo das cartas. Outro dia, arrumando caixas e gavetas, encontrei uma carta daquela época, que recebi de uma amiga que morava no Rio. Estava lá, de cor rosa, desbotada pelo tempo, adormecida em um envelope azul, dobrada cuidadosamente, escrita em caneta preta, numa linda e caprichosa letra redondinha. Ao abrir vi que a carta guardava, entre suas dobras, uma bela flor seca, que um dia já fora vermelha. Tão chic!... Nessa carta, essa amiga me falava de um acampamento que fizera, onde conheceu pessoas interessantes (aos 15 todo mundo é interessante), com descrições tão singelas quanto o imaginário de uma menina dessa idade permitia suscitar acerca dos “meninos”. Na mesma caixa, em meio a tantos postais, fotografias, flores secas, laços, cartões, bilhetes, desenhos, poesias e outros papéis, achei uma carta fechada que nunca mandei, por algum motivo que não lembro. Era para uma outra amiga, que fora minha vizinha, e que morava à época em São Paulo, com quem nunca mais tive contato depois da adolescência. Tempos atrás encontrei sua mãe e soube que ela havia falecido há muitos anos. Sofreu um acidente junto com o noivo. Moravam em Curitiba e estavam indo de carro para São Paulo entregar os convites de casamento. Os dois partiram juntos. Uma história romântica e triste ao mesmo tempo. A carta me fez experimentar um breve pesar pela lembrança de Alessandra, uma menina tão alegre, cheia de sonhos, que gostava de gatos e de fazer bolos nos fins de tarde. Comi muitas cukas em sua casa. Continuei a remexer minhas coisas. Deus do céu, como historiador guarda velharias! Achei outras preciosidades de valor sentimental: dois cadernos com pensamentos e poesias, copiados de jornais e revistas, afinal o acesso à informação não era tão fácil como hoje. Minha letra era tão bonitinha. Letra de menininha. Fazia os  pingos dos “is” com bolinhas e enfeitava as bordas dos cadernos com imagens recortadas de revistas e desenhos rococós de flores, luas, estrelas e borboletas. Curiosamente não achei nenhum coração. Quando escrevia meus trabalhos escolares, gostava de consultar meus caderninhos e procurar alguma poesia ou algum pensamento para introduzir os assuntos. Acho que essa sempre foi a minha marca registrada, pois fiz isso até em minha dissertação de mestrado, iniciada com “Os domínios do mistério prometem as mais belas experiências. (Einstein).  Mas, além da nostalgia que a presença daqueles souveniers do país dos tempos idos me provocaram, pus-me a refletir que hoje “O Pensador” do Google tem todas as minhas anotações... Compartilhamos tantos pensamentos de outros e pensamentos nossos que vejo que minhas cartas já não são mais minhas, meus cadernos já não são mais privados, meus pensamentos já não são mais meus... não há mais nada original, nem pecados... hoje tudo pertence ao “grande pensador”...

"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!"
(Eça de Queiroz - musicado por Arnaldo Antunes)

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