Roteiro de um dos episódios da série "Quintana, Anjo Poeta"
(Ricardo Silvestrin)
QUINTANA
Sim, tem a inspiração, mas não só ela. Paul Valéry
disse que os deuses dão o primeiro verso. Os
outros o poeta tem que criar. E eu digo que o
santo baixa sim. Mas só um pedaço. A gente tem que
puxar o santo pelos pés pra ele vir inteiro.
JARDIM DE ZEUS
Das nuvens no céu, Zeus, um homem com barbas
brancas. Ele está dormindo. De repente abre os olhos.
ZEUS
Essa música... Música.
Zeus está sentado em uma cadeira de praia em um jardim em cima de
um prédio. Ele levanta-se e caminha até uma murada, olha para um prédio em
frente onde, na janela, uma mulher dança.
ZEUS
Música vem de musa: significa arte das musas.
ZEUS
Os poetas pedem inspiração às musas antes de começar a trabalhar.
Nas horas mais impróprias. As musas são minhas filhas. São nove.
ZEUS
Eu? Desculpe, pensei que você tivesse me reconhecido.
Zeus no seu jardim.
ZEUS
Eu sou Zeus, o rei dos deuses, muito prazer.
Zeus caminha até a murada novamente.
ZEUS
Posso ver tudo aqui de cima, escutar e ler... o
que um poeta está escrevendo. Escutem...
Quintana escrevendo na sua mesa, em silêncio.
ZEUS
"Comecei a escrever este poema
às 12h23min de 13 de agosto de 1974
Os pesquisadores não querem outra vida
Eles morrem por dados
- mal sabem que a vida
é um incerto e implacável jogo de dados...
ZEUS
É o poeta Mario Quintana.
Zeus vai até uma bancada onde estão vários livros e objetos. Zeus
pega um maço de folhas.
ZEUS
Ele está precisando de inspiração.
Zeus abre as folhas no balcão.
ZEUS
Uma musa.
Vemos uma das folhas que Zeus mexe.
ZEUS
Esta é a minha filha Clio, a musa da história.
Quintana escrevendo na sua mesa.
ZEUS
E eu tanto que desejava que minha biografia
terminasse de súbito...
Na mesa por trás de Mário Quintana vemos um calendário.
No calendário está Clio.
Clio olha e sorri na direção de Mário Quintana.
ZEUS
...simplesmente assim:
"Desaparecido na batalha de Itororó"!
(Desaparecido? Meu Deus,
quem sabe se ainda estarei vivo?!)"
JARDIM DE ZEUS
Zeus olha para a folha onde está Clio.
Clio sorri na página.
ZEUS
Cada uma das musas protege uma arte ou ciência.
Zeus folheia rapidamente as folhas.
ZEUS
Minhas filhas permanecem jovens e belas
eternamente.
Zeus pega uma folha e a olha separadamente das outras. A imagem é
de uma musa como em um pôster de um filme com colagens.
ZEUS
Calíope, a musa da poesia épica.
O vento tira a folha das mãos de Zeus.
Zeus vê a folha voar por entre os prédios.
QUARTO DE QUINTANA
Pelo lado de fora vemos a folha que estava voando grudar na
janela de Quintana.
QUARTO DE QUINTANA
Mário Quintana trabalhando. Ao fundo vemos o calendário,
com Clio. Clio olha na direção da janela. Calíope, na folha que
está na janela, olha para dentro do quarto. Vemos o que Quintana
escreve: "É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis como na
guerra do Paraguai..."
ZEUS
É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis
como na guerra do Paraguai...
A folha se desprende da janela.
VENDEDOR AMBULANTE
Mas eram bem falantes
Um jornaleiro na banca.
JORNALEIRO
E todos os seus gestos eram ritmados como num
balé.
Uma dona de casa no supermercado.
DONA DE CASA
Pela cadência dos metros homéricos.
Uma caixa de supermercado.
CAIXA DE SUPERMERCADO
Fora do ritmo, só há danação.
A folha cai aos pés de uma menina, na rua.
MENINA NA RUA
Fora da poesia não há salvação.
JARDIM DE ZEUS
Zeus tem o maço de folhas na mão e olha na janela do prédio a
mulher dançando. Zeus folheia e pega uma folha, rasga-a, fazendo
uma moldura que ele coloca na frente do seu rosto e vê a janela
onde a mulher dança.
ZEUS
Terpsícore, musa da dança. A poesia é dança e a
dança é alegria.
Uma multidão caminhando, dribles de futebol, carros que vão
e voltam, uma ola no estádio de futebol, Quintana caminhando
pela rua.
ZEUS
Dança, pois, teu desespero, dança.
Tua miséria, teus arrebatamentos,
Teus júbilos
E,
Mesmo que temas imensamente a Deus,
Dança como David diante da Arca da Aliança;
Mesmo que temas imensamente a morte...
Dança diante da tua cova.
Tece coroas de rimas...
Enquanto o poema não termina.
A rima é como uma esperança
Que eternamente se renova.
A canção, a simples canção,
é uma luz dentro da noite.
Sabem todas as almas perdidas.
O solene canto é um archote nas trevas.
Sabem todas as almas perdidas.
Quintana escrevendo na sua mesa, em silêncio
Terpsícore dançando (aplicada sobre a imagem de Quintana). A
imagem de Mário escurece e some, ficando somente Terpsícore
dançando. Ao fundo, grafismo com o poema.
ZEUS
Dança, encantado dominador de monstros,
Tirano das esfinges,
Dança, Poeta,
E sob o aéreo, o implacável,
o irresistível ritmo de teus pés,
Deixa rugir o Caos atônito...
Vemos a imagem de Quintana ao lado de Bruna Lombardi
- Eles estão numa livraria dando entrevista.
Bruna lê o poema de Quintana chamado O Poema
BRUNA
Um poema como um gole d`água bebido no escuro.
Como um pobre animal palpitando ferido.
Como pequenina moeda de prata
perdida pra sempre na floresta noturna.
Um poema sem outra angústia
que a sua misteriosa condição de poema.
Triste.
Solitário.
Único.
Ferido de mortal beleza.
JARDIM DE ZEUS
Zeus está sentado em sua cadeira no meio do jardim. Ele olha uma
folha onde uma mulher está em uma colagem com corações e cupidos.
ERATO
Ela é quem está apaixonada por ele.
BRUNA
O Mario é que é meu muso.
JARDIM DE ZEUS
Zeus pega a folha com Erato.
ZEUS
Erato, você entende tudo de amor.
ERATO
E Quintana sabe tudo de poesia de amor. Escuta só.
QUINTANA
Eu não gosto desses poetas que fazem poesia pra
cantar mulher. A poesia não é para cantar mulher.
É para encantar a mulher.
Quintana falando o poema para Greta Garbo
QUINTANA
Teu sorriso é imemorial como as pirâmides
E puro como a flor que abriu na manhã de hoje.
A Greta Garbo? É minha namorada.
Quintana conta que foram ele e amigo bebendo pelo caminho para
tomar coragem de ir falar com a Cecília Meireles.
Vemos, nas folhas caídas no chão, Erato e as musas de Quintana,
lado a lado.
ERATO
Eu faço versos como saltimbancos desconjuntam os
ossos doloridos. A entrada é livre para os
conhecidos... Sentai, Amadas, nos primeiros
bancos.
Amar é mudar a alma de casa.
Senhora, eu vos amo tanto
Que até por vosso marido
Me dá um certo quebranto...
JARDIM DE ZEUS
Zeus recolhe as folhas no chão e fala
ZEUS
Esse poema, o Quintana escreveu para a sua amada,
a poetisa Cecília Meireles.
QUINTANA
Quando escrevo um poema de amor, querem saber quem é ela, quem é
ela. Acho isso uma bobagem. A musa não é um ponto de chegada,
é um ponto de partida.
JARDIM DE ZEUS
Zeus caminha de um lado para outro olhando as musas nas folhas de
papel. Ele pára e escolhe uma folha
JARDIM DE ZEUS
Zeus segura em suas mãos a imagem da musa da comédia Thalia.
Zeus coloca as folhas com as musas no balcão.
ZEUS
Thalia, a musa da comédia. Ela e o Quintana se
adoram...
JARDIM DE ZEUS Zeus rasga duas folhas, onde estão Erato e Thalia, e as une. Em
outro recorte estão imagens de Mario Quintana.
ZEUS
Erato e Thalia, o amor e o humor, juntos, no mesmo
poema de Quintana.
ERATO
O meu amor, o meu amor, Maria
É como um fio telegráfico de estrada
Aonde vêm pousar as andorinhas...
De vez em quando chega uma
E canta.
THALIA
Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!
ERATO
Canta e vai-se embora
Outra, nem isso,
Mal chega, vai-se embora.
THALIA
A última que passou
Limitou-se a fazer cocô
No meu pobre fio de vida!
ERATO
No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
As andorinhas é que mudam.
JARDIM DE ZEUS
Zeus pega um pêssego, observa
ZEUS
E essa tentação de roçar na face a pele perfumada
do pêssego, como se ele fosse uma pêssega.
Zeus morde o pêssego. Ao longe ouvimos barulho de sirenes.
Zeus debruça-se sobre a murada e olha para baixo.
ZEUS
Melpômene...
Nuvens escuras no céu.
ZEUS
.. a musa da tragédia.
Vemos a folha em que está Melpômene, ela surge entre uma montagem
de raios e trovões
ZEUS
Olha, minha filha, um poema inspirado por Erato e
por você.
Erato e Melpômene, de dentro de suas páginas, falam o poema.
ERATO
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos.
MELPÔMENE
Trago-te essas mãos vazias
ERATO
Que vão tomando a forma do teu seio.
JARDIM DE ZEUS
Zeus caminha em seu jardim
ZEUS
Um grande poeta como Mario Quintana é inspirado
por todas as musas. Ele mistura o amoroso com o
trágico, com o cômico. O épico se mistura com a
dança. Movido por Etuerpe, musa da música e da
poesia lírica, e por Terpsícore, musa da dança,
ele escreveu:
Um papel com o poema escrito, a folha está pegando fogo e vai se
consumindo enquanto o poema é dito
ZEUS
A vida é um incêndio: nela
Dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida,
na própria luz consumida...
JARDIM DE ZEUS
ZEUS
Polímnia, musa da poesia sacra e dos hinos.
Por efeito de animação, Polímnia vira um santinho de papel. O
santinho vira e atrás está escrito o poema. Zeus, com o santinho
na mão, lê o poema. Enquanto ele lê, um novo prédio de palavras
surge na paisagem urbana.
ZEUS
Eles ergueram a Torre de Babel
Para escalar o Céu,
Mas Deus não estava lá!
Estava ali mesmo, entre eles,
Ajudando a construir a torre.
Zeus vira o papel (santinho) e agora, onde antes estava Polímnia,
agora está uma foto de Mario Quintana.
Zeus sorri. Uma sombra cobre o santinho. Zeus vê o sol se pôr e a
lua no céu.
ZEUS
Ouçam o que Mario Quintana fez inspirado por
Urânia, musa da astronomia.
PAULO
Os grilos... os grilos....
Meu Deus se a gente pudesse
Puxar por uma perna um só grilo
Se desfiariam todas as estrelas!
URANIA EM UM CÉU ESTRELADO, BARULHOS DE GRILOS. ELA
PUXA AS ESTRELAS QUE CAEM COMO UMA CORTINA.
QUARTO DE QUINTANA
Pela janela de Quintana vemos as estrelas caírem - Dentro do
quarto, um passeio pelos objetos pessoais de Quintana.
QUINTANA
Às vezes o poema nada tem que ver com o que o
motivou. As musas vão como as andorinhas sobre o
fio, voam, mas o fio fica...
Quintana caminha pela rua
ZEUS
Bem aventurados os pintores escorrendo luz
Que se expressam em verde
Azul
Ocre
Cinza
Zarcão!
Bem aventurados os músicos...
E os bailarinos
E os mímicos
E os matemáticos...
Cada qual na sua expressão!
Só poeta é que tem de lidar
com a ingrata linguagem alheia...
A impura linguagem dos homens!
JARDIM DE ZEUS
Zeus caminha até a murada.
ZEUS
Meu Deus, que vontade me deu de escrever um
poeminho...
Olha, agora mesmo vai passando um!
Pst pst pst
Vem cá para que eu te entube
Nos compêndios de minhas obras completas
Vem cá para que eu te empoete
Para que eu te enrime
Para que eu te enritme
Para que eu te enlire
Para que eu te empégase
Para que eu te enverse
Para que eu te emprose
Imagem de Mario Quintana caminhando pela rua e abanando.
ZEUS
Vem cá...
Vaca!
Escafedeu-se!
Editado do texto de Ricardo Silvestrin, 2006
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br
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