sábado, 1 de setembro de 2012

Quintana (anjo poeta) e as musas...


Roteiro de um dos episódios da série "Quintana, Anjo Poeta"
 (Ricardo Silvestrin)              
        
 QUINTANA
               Sim, tem a inspiração, mas não só ela. Paul Valéry
               disse que os deuses dão o primeiro verso. Os
               outros o poeta tem que criar. E eu digo que o
               santo baixa sim. Mas só um pedaço. A gente tem que
               puxar o santo pelos pés pra ele vir inteiro.
JARDIM DE ZEUS
Das nuvens no céu, Zeus, um homem com barbas
brancas. Ele está dormindo. De repente abre os olhos.
               ZEUS
               Essa música... Música.
Zeus está sentado em uma cadeira de praia em um jardim em cima de
um prédio. Ele levanta-se e caminha até uma murada, olha para um prédio em
frente onde, na janela, uma mulher dança.
               ZEUS
               Música vem de musa: significa arte das musas.
               ZEUS
Os poetas pedem inspiração às musas antes de começar a trabalhar.
Nas horas mais impróprias. As musas são minhas filhas. São nove.
               ZEUS
               Eu? Desculpe, pensei que você tivesse me reconhecido.
Zeus no seu jardim.
               ZEUS
               Eu sou Zeus, o rei dos deuses, muito prazer.
Zeus caminha até a murada novamente.              
               ZEUS
               Posso ver tudo aqui de cima, escutar e ler... o
               que um poeta está escrevendo. Escutem...
Quintana escrevendo na sua mesa, em silêncio.
               ZEUS
                "Comecei a escrever este poema
               às 12h23min de 13 de agosto de 1974
               Os pesquisadores não querem outra vida
               Eles morrem por dados
               - mal sabem que a vida
               é um incerto e implacável jogo de dados...
               ZEUS
               É o poeta Mario Quintana.
Zeus vai até uma bancada onde estão vários livros e objetos. Zeus
pega um maço de folhas.
               ZEUS
               Ele está precisando de inspiração.
Zeus abre as folhas no balcão.              
               ZEUS
               Uma musa.
Vemos uma das folhas que Zeus mexe.
               ZEUS
                Esta é a minha filha Clio, a musa da história.
Quintana escrevendo na sua mesa.
               ZEUS
                E eu tanto que desejava que minha biografia
terminasse de súbito...
Na mesa por trás de Mário Quintana vemos um calendário.
No calendário está Clio.
Clio olha e sorri na direção de Mário Quintana.
               ZEUS
                ...simplesmente assim:
               "Desaparecido na batalha de Itororó"!
               (Desaparecido? Meu Deus,
               quem sabe se ainda estarei vivo?!)"
JARDIM DE ZEUS
Zeus olha para a folha onde está Clio.
Clio sorri na página.
               ZEUS
               Cada uma das musas protege uma arte ou ciência.
Zeus folheia rapidamente as folhas.
               ZEUS
               Minhas filhas permanecem jovens e belas
               eternamente.
Zeus pega uma folha e a olha separadamente das outras. A imagem é
de uma musa como em um pôster de um filme com colagens.
               ZEUS
               Calíope, a musa da poesia épica.
O vento tira a folha das mãos de Zeus.
Zeus vê a folha voar por entre os prédios.              
QUARTO DE QUINTANA
Pelo lado de fora vemos a folha que estava voando grudar na
janela de Quintana.
QUARTO DE QUINTANA
Mário Quintana trabalhando. Ao fundo vemos o calendário,
com Clio. Clio olha na direção da janela. Calíope, na folha que
está na janela, olha para dentro do quarto. Vemos o que Quintana
escreve: "É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis como na
guerra do Paraguai..."
               ZEUS
                É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis
               como na guerra do Paraguai...
A folha se desprende da janela.
               VENDEDOR AMBULANTE
               Mas eram bem falantes
Um jornaleiro na banca.
               JORNALEIRO
               E todos os seus gestos eram ritmados como num
               balé.
Uma dona de casa no supermercado.
               DONA DE CASA
               Pela cadência dos metros homéricos.
Uma caixa de supermercado.
               CAIXA DE SUPERMERCADO
               Fora do ritmo, só há danação.
A folha cai aos pés de uma menina, na rua.
               MENINA NA RUA
               Fora da poesia não há salvação.
JARDIM DE ZEUS
Zeus tem o maço de folhas na mão e olha na janela do prédio a
mulher dançando. Zeus folheia e pega uma folha, rasga-a, fazendo
uma moldura que ele coloca na frente do seu rosto e vê a janela
onde a mulher dança.
               ZEUS
               Terpsícore, musa da dança. A poesia é dança e a
               dança é alegria.
Uma multidão caminhando, dribles de futebol, carros que vão
e voltam, uma ola no estádio de futebol, Quintana caminhando
pela rua.
               ZEUS
               Dança, pois, teu desespero, dança.
               Tua miséria, teus arrebatamentos,
               Teus júbilos
               E,
               Mesmo que temas imensamente a Deus,
               Dança como David diante da Arca da Aliança;
               Mesmo que temas imensamente a morte...
               Dança diante da tua cova.
               Tece coroas de rimas...
               Enquanto o poema não termina.
               A rima é como uma esperança
               Que eternamente se renova.
               A canção, a simples canção,
               é uma luz dentro da noite.
               Sabem todas as almas perdidas.
               O solene canto é um archote nas trevas.
               Sabem todas as almas perdidas.
Quintana escrevendo na sua mesa, em silêncio
Terpsícore dançando (aplicada sobre a imagem de Quintana). A
imagem de Mário escurece e some, ficando somente Terpsícore
dançando. Ao fundo, grafismo com o poema.
               ZEUS
               Dança, encantado dominador de monstros,
               Tirano das esfinges,
               Dança, Poeta,
               E sob o aéreo, o implacável,
               o irresistível ritmo de teus pés,
               Deixa rugir o Caos atônito...
Vemos a imagem de Quintana ao lado de Bruna Lombardi
- Eles estão numa livraria dando entrevista.
Bruna lê o poema de Quintana chamado O Poema
               BRUNA
               Um poema como um gole d`água bebido no escuro.
               Como um pobre animal palpitando ferido.
               Como pequenina moeda de prata
               perdida pra sempre na floresta noturna.
               Um poema sem outra angústia
               que a sua misteriosa condição de poema.
               Triste.
               Solitário.
               Único.
               Ferido de mortal beleza.
JARDIM DE ZEUS
Zeus está sentado em sua cadeira no meio do jardim. Ele olha uma
folha onde uma mulher está em uma colagem com corações e cupidos.
               ERATO
               Ela é quem está apaixonada por ele.
               BRUNA
               O Mario é que é meu muso.
JARDIM DE ZEUS
Zeus pega a folha com Erato.
               ZEUS
               Erato, você entende tudo de amor.
               ERATO
               E Quintana sabe tudo de poesia de amor. Escuta só.
               QUINTANA
               Eu não gosto desses poetas que fazem poesia pra
               cantar mulher. A poesia não é para cantar mulher.
               É para encantar a mulher.
Quintana falando o poema para Greta Garbo
               QUINTANA
               Teu sorriso é imemorial como as pirâmides
               E puro como a flor que abriu na manhã de hoje.
               A Greta Garbo? É minha namorada.
Quintana conta que foram ele e amigo bebendo pelo caminho para
tomar coragem de ir falar com a Cecília Meireles.
Vemos, nas folhas caídas no chão, Erato e as musas de Quintana,
lado a lado.
               ERATO
               Eu faço versos como saltimbancos desconjuntam os
               ossos doloridos. A entrada é livre para os
               conhecidos... Sentai, Amadas, nos primeiros
               bancos.
               Amar é mudar a alma de casa.
               Senhora, eu vos amo tanto
               Que até por vosso marido
               Me dá um certo quebranto...
JARDIM DE ZEUS
Zeus recolhe as folhas no chão e fala
               ZEUS
               Esse poema, o Quintana escreveu para a sua amada,
               a poetisa Cecília Meireles.
QUINTANA
Quando escrevo um poema de amor, querem saber quem é ela, quem é
ela. Acho isso uma bobagem. A musa não é um ponto de chegada,
é um ponto de partida.
JARDIM DE ZEUS
Zeus caminha de um lado para outro olhando as musas nas folhas de
papel. Ele pára e escolhe uma folha
JARDIM DE ZEUS
Zeus segura em suas mãos a imagem da musa da comédia Thalia.
Zeus coloca as folhas com as musas no balcão.
               ZEUS
               Thalia, a musa da comédia. Ela e o Quintana se
               adoram...
JARDIM DE ZEUS Zeus rasga duas folhas, onde estão Erato e Thalia, e as une. Em
outro recorte estão imagens de Mario Quintana.
               ZEUS
               Erato e Thalia, o amor e o humor, juntos, no mesmo
               poema de Quintana.
               ERATO
               O meu amor, o meu amor, Maria
               É como um fio telegráfico de estrada
               Aonde vêm pousar as andorinhas...
               De vez em quando chega uma
               E canta.
               THALIA
               Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!
               ERATO
               Canta e vai-se embora
               Outra, nem isso,
               Mal chega, vai-se embora.
               THALIA
               A última que passou
               Limitou-se a fazer cocô
               No meu pobre fio de vida!
               ERATO
               No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:
               As andorinhas é que mudam.
JARDIM DE ZEUS
Zeus pega um pêssego, observa
               ZEUS
               E essa tentação de roçar na face a pele perfumada
               do pêssego, como se ele fosse uma pêssega.
Zeus morde o pêssego. Ao longe ouvimos barulho de sirenes.
Zeus debruça-se sobre a murada e olha para baixo.
               ZEUS
               Melpômene...
Nuvens escuras no céu.
               ZEUS
               .. a musa da tragédia.
Vemos a folha em que está Melpômene, ela surge entre uma montagem
de raios e trovões
               ZEUS
               Olha, minha filha, um poema inspirado por Erato e
               por você.
Erato e Melpômene, de dentro de suas páginas, falam o poema.
               ERATO
               Eu queria trazer-te uns versos muito lindos.
               MELPÔMENE
               Trago-te essas mãos vazias
               ERATO
               Que vão tomando a forma do teu seio.
JARDIM DE ZEUS
Zeus caminha em seu jardim
               ZEUS
               Um grande poeta como Mario Quintana é inspirado
               por todas as musas. Ele mistura o amoroso com o
               trágico, com o cômico. O épico se mistura com a
               dança. Movido por Etuerpe, musa da música e da
               poesia lírica, e por Terpsícore, musa da dança,
               ele escreveu:
Um papel com o poema escrito, a folha está pegando fogo e vai se
consumindo enquanto o poema é dito
               ZEUS
               A vida é um incêndio: nela
               Dançamos, salamandras mágicas.
               Que importa restarem cinzas
               se a chama foi bela e alta?
               Em meio aos toros que desabam,
               cantemos a canção das chamas!
               Cantemos a canção da vida,
               na própria luz consumida...
JARDIM DE ZEUS
               ZEUS
               Polímnia, musa da poesia sacra e dos hinos.
Por efeito de animação, Polímnia vira um santinho de papel. O
santinho vira e atrás está escrito o poema. Zeus, com o santinho
na mão, lê o poema. Enquanto ele lê, um novo prédio de palavras
surge na paisagem urbana.
               ZEUS
               Eles ergueram a Torre de Babel
               Para escalar o Céu,
               Mas Deus não estava lá!
               Estava ali mesmo, entre eles,
               Ajudando a construir a torre.
Zeus vira o papel (santinho) e agora, onde antes estava Polímnia,
agora está uma foto de Mario Quintana.
Zeus sorri. Uma sombra cobre o santinho. Zeus vê o sol se pôr e a
lua no céu.
               ZEUS
               Ouçam o que Mario Quintana fez inspirado por
               Urânia, musa da astronomia.
               PAULO
               Os grilos... os grilos....
               Meu Deus se a gente pudesse
               Puxar por uma perna um só grilo
               Se desfiariam todas as estrelas!
URANIA EM UM CÉU ESTRELADO, BARULHOS DE GRILOS. ELA
PUXA AS ESTRELAS QUE CAEM COMO UMA CORTINA.
QUARTO DE QUINTANA
Pela janela de Quintana vemos as estrelas caírem - Dentro do
quarto, um passeio pelos objetos pessoais de Quintana.
               QUINTANA
               Às vezes o poema nada tem que ver com o que o
               motivou. As musas vão como as andorinhas sobre o
               fio, voam, mas o fio fica...
Quintana caminha pela rua
               ZEUS
                Bem aventurados os pintores escorrendo luz
               Que se expressam em verde
               Azul
               Ocre
               Cinza
               Zarcão!
               Bem aventurados os músicos...
               E os bailarinos
               E os mímicos
               E os matemáticos...
               Cada qual na sua expressão!
               Só poeta é que tem de lidar
               com a ingrata linguagem alheia...
               A impura linguagem dos homens!
JARDIM DE ZEUS
Zeus caminha até a murada.
               ZEUS
               Meu Deus, que vontade me deu de escrever um
               poeminho...
               Olha, agora mesmo vai passando um!
               Pst pst pst
               Vem cá para que eu te entube
               Nos compêndios de minhas obras completas
               Vem cá para que eu te empoete
               Para que eu te enrime
               Para que eu te enritme
               Para que eu te enlire
               Para que eu te empégase
               Para que eu te enverse
               Para que eu te emprose
Imagem de Mario Quintana caminhando pela rua e abanando.
               ZEUS
               Vem cá...
               Vaca!
               Escafedeu-se!


Editado do texto de Ricardo Silvestrin, 2006
Casa de Cinema de Porto Alegre
http://www.casacinepoa.com.br

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