sábado, 18 de abril de 2009

A Babel de nossos dias...

A palavra Bíblia quer dizer reunião de livros, sendo ela composta por textos do Velho e do Novo Testamento. É sabido que os textos bíblicos foram escritos em três línguas: grego, hebraico e aramaico. Até o século XV somente o clero católico tinha acesso às escrituras e as tentativas de tradução foram duramente reprimidas. Durante a Renascença aconteceram inúmeros movimentos de retomada dessas antigas escrituras, sendo Lutero um dos precursores, gerando o que viemos chamar de Reforma Protestante... E a Bíblia enfim, foi traduzida. Bom, vejo aqui três problemas: primeiro a compilação; segundo a tradução; e terceiro a questão da interpretação.

A compilação bíblica (reunião dos textos sagrados) foi feita por volta do século IV d.C., embora os textos sejam muito mais antigos, e foi a Igreja Católica (a única que existia até então) quem decidiu e escolheu quais textos fariam parte das sagradas escrituras e quais seriam relegados ao esquecimento. Portanto, a Bíblia que conhecemos hoje, é uma construção católica. Foi o clero que decidiu quais Evangelhos seriam divulgados. O Vaticano ainda guarda em seus arquivos, a mil chaves, documentos que contradizem as suas verdades dogmáticas colocadas na Bíblia. E infelizmente não podemos fazer nada quanto a isso. Vez por outra, algum historiador corajoso divulga algum achado de textos, tão antigos ou mais que os bíblicos, mas que não fazem parte do Cânon das escrituras "autênticas", tornando-os sempre objeto de polêmica e desconfiança. Os manuscritos do Mar Morto são um exemplo disso. Tais textos recebem o nome de "apócrifos", isto é, são obras não autorizadas e de veracidade não comprovada, do ponto de vista da igreja, não aceitas como verdadeiras (por conveniência, é claro). No entanto, são textos antiqüíssimos e cientificamente datados, mas que incomodam a manutenção do poder secular. Se por um lado as centenas de igrejas atuais renegam a autoridade católica, por outro usam a sua compilação para pregar as suas verdades, pois a Bíblia é uma construção da Igreja Católica e não há como refutar essa evidência. Vejo um nó incômodo nessa questão.

Segundo ponto: a tradução. Traduzir uma língua é buscar um equivalente significativo em outra língua que expresse a idéia da língua original e conserve a sua mensagem. Porém, há expressões e idéias que não encontram tal equivalência. O escritor Humberto Eco, em "Quase a mesma coisa", explorou brilhantemente essa questão. Uma tradução também depende do sentido atribuído ao objeto dado pelo tradutor. Muito se perde e muito se cria nessa dinâmica de equivalência lingüística. As palavras de um idioma são fruto das relações culturais e sociais praticadas por uma dada sociedade que fala uma determinada língua. A língua é um elemento vivo. Ela tem a propriedade de conservar alguns sentidos e inverter outros com o passar dos tempos. Por exemplo: a palavra abrigo que hoje significa fechado, vem do latim apricus, que queria dizer aberto; a palavra obeso, que em seu sentido atual quer dizer gordo, tem sua origem no latim obesus e significava fraco, delgado; e ainda aperitivum que significava purgante, hoje é usado no sentido de abrir o apetite. Portanto, a língua sofre mutações ao longo dos tempos, o que quer dizer que as traduções de expressões antigas podem estar equivocadas. O que pretendo mostrar aqui, é que os pretensos leitores da palavra sagrada, defensores ferrenhos e fundamentalistas da exegese, deveriam lê-la no seu idioma original, em grego, hebraico e aramaico, para assim chegarem mais próximo ao verdadeiro sentido que lhe foi dado por seus antigos autores. O que se lê hoje vem carregado de glosas, mudanças de sentidos e reinterpretações dada por cada tradutor e por cada leitor ao longo dos anos, pois entre o texto bíblico e o contexto de entendimento, muito se agrega e muito se retira do seu sentido primordial.

Finalmente o terceiro ponto espinhoso: a interpretação. Calvino, durante os anos da Reforma, ingenuamente acreditou que seria possível apenas uma única interpretação da palavra. Mas ele estava redondamente enganado. Interpretar é atribuir sentido a algo, dar um entendimento. Eis o grande problema dos nossos dias. Em meio a tantas traduções e intermediários que interpretam a Bíblia pelo leitor, temos uma palavra, a Bíblia, compreendida de várias formas. Uma verdade entendida como várias. Me pergunto se não estamos revivendo uma versão mais moderna da Torre de Babel (não por acaso uma antiga biblioteca), onde vemos a palavra primordial, a língua prima se transformar em várias verdades, decorrentes de várias interpretações. Ou, não teríamos tantas igrejas e tantas religiões, cada uma interpretando a Bíblia do jeito que lhe convém. E o que dizer dos intermediários que interpretam a Bíblia por nós? Será que individualmente não somos capazes de ler e entender por nós mesmos? Já vi algumas versões que trazem a interpretação das passagens simbólicas e metafóricas em nota de rodapé, retirando do leitor o seu direito de interpretar. O mito da Torre de Babel está mais atual do que nunca, pois de uma única língua fizeram várias... tornando-a motivo de discussões, guerras e disputas de poder. Concluo tristemente que ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, seria apenas a minha interpretação...

Se os heróis de Cazuza morreram de overdose, os meus morreram na fogueira...

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