Tiveram outros encontros e vários colóquios.
Ipásia falava, e Baudolino gostaria que a sua doutrina fosse amplíssima e
infinita, para não deixar de estar suspenso pelas suas palavras. Respondia a
todas as perguntas de Baudolino com intrépido candor, sem jamais enrubescer:
nada para ela era tema de sórdida proibição, tudo era transparente.
Baudolino, enfim, arriscou-se a perguntar-lhe
como as ipásias, havia séculos, se perpetuavam. Ela respondeu que todos os anos
a Mãe escolhia algumas dentre elas que deveriam procriar, e as acompanhava até
os fecundadores. Ipásia fora reticente a respeito, naturalmente jamais os vira,
tampouco vira as ipásias consagradas no rito. Eram levadas a um lugar de noite;
bebiam uma poção que as inebriava e as aturdia, eram fecundadas, e depois
voltavam para sua comunidade, e aquelas que ficavam grávidas eram cuidadas
pelas companheiras até o parto: se o fruto das suas entranhas fosse macho, era
devolvido aos fecundadores, que o educariam para ser como eles, se fosse fêmea
ficava na comunidade e crescia como uma ipásia.
A união carnal, disse Ipásia, tal como fazem os
animais, que não possuem uma alma, é apenas um modo de multiplicar o erro da
criação. As ipásias que são enviadas para os fecundadores aceitam essa
humilhação somente porque temos que continuar existindo, para redimir o mundo
daquele erro. Quem de nós sofreu a fecundação não lembra nada daquele ato que,
se não tivesse sido realizado, como se fora um sacrifício, teria alterado a
nossa apatia...
O que é apatia?
Aquilo em que cada ipásia vive e se sente feliz
por viver.
Por que o erro da criação?
Mas Baudolino, dizia ela rindo com cândida
surpresa, achas que o mundo é perfeito? Olha para esta flor, olha para a
delicadeza do caule, olha esta espécie de olho poroso que triunfa ao centro,
olha como suas pétalas são todas iguais, e um pouco arqueadas para colher o
orvalho pela manhã como uma concha, olha a felicidade com a qual se oferece a
este inseto que está sugando sua seiva... Não é lindo?
É lindo, realmente. Mas justo por isso, não é bom
que seja lindo? Não é esse o milagre divino?
Baudolino, amanhã de manhã esta flor estará
morta, e daqui a dois dias será apenas putrefação. Vem comigo. Levou-o para o
mato, mostrando-lhe um cogumelo de cúpula vermelha listrado de chamas amarelas.
É lindo, disse.
É lindo.
É venenoso. Quem comer morrerá. Pode parecer
perfeita uma criação na qual a morte está à espreita? Sabes que morrerei
também, um dia, e que também serei putrefação, se não me consagrasse à redenção
de Deus?
A redenção de Deus? Explica-me...
Acaso não serás também um cristão, Baudolino,
como os monstros de Pndapetzim? Os cristãos que mataram Ipásia acreditavam numa
divindade cruel que criara o mundo, e com ele a morte, o sofrimento e, pior do
que sofrimento físico, o mal da alma. Os seres criados são capazes de odiar, de
matar, de fazer sofrer os próprios semelhantes. Não acreditarás que um Deus
justo tenha destinado seus filhos a esta miséria...
Mas os homens injustos fazem essas coisas, e Deus
os castiga, salvando os bons.
Mas então por que esse Deus nos criou, para
depois expor-nos ao risco da perdição?
Mas porque o bem supremo é a liberdade de fazer o
bem e o mal e, para dar a seus filhos semelhante bem, Deus deve aceitar que
alguns façam mau uso dele.
Por que dizes que a liberdade é um bem?
Porque se a subtraem de ti, se te acorrentam, se
não te deixam fazer o que desejas, sofres, e então a falta da liberdade é um
mal.
Acaso podes girar tua cabeça de modo que vejas o
que está atrás de ti, mas girá-la de verdade, a ponto de poderes ver as tuas
costas? Podes entrar naquele lago e permanecer lá embaixo até a noite, mas digo
ali embaixo, sem nunca por a cabeça pra fora? Falava e ria.
Não, porque se tentasse girar completamente a
cabeça quebraria o pescoço e se ficasse debaixo d’água a água me impediria de
respirar. Deus criou-me com estes limites para impedir que eu causasse mal a
mim mesma.
Mas dizes que tirou algumas liberdades para teu
bem, não é verdade?
Ele as tirou para que eu não sofra.
Então por que te deu a liberdade de escolher
entre o bem e o mal, de modo que corres o risco depois de sofrer os castigos
eternos?
Deus nos deu a liberdade pensando que a usaríamos
bem. Mas houve a rebelião dos anjos, que introduziu o mal no mundo, e foi a
serpente que tentou Eva, razão pela qual sofremos todos o pecado original. Não
é culpa de Deus.
E quem criou os anjos e a serpente?
Deus, certamente, mas antes que se rebelassem
eram bons como ele os fizera.
Então o mal não foi criado por eles?
Não, eles o cometeram, mas existia antes, como
possibilidade de rebelar-se contra Deus.
Portanto, o mal foi criado por Deus?
Ipásia, és inteligente, sensível, perspicaz, e
sabes conduzir uma diputatio muito
melhor do que eu, que estudei em Paris, mas não me digas estas coisas do bom
Deus. Ele não pode querer o mal!
Claro que não, um Deus que quer o mal seria o
contrário de Deus.
E então?
E então, Deus encontrou o mal a seu lado, sem o
desejar, como a parte obscura de si mesmo.
Mas Deus é o ser perfeitíssimo!
Certo, Baudolino, Deus é o que mais de perfeito
pode existir, mas se soubesses o trabalho que dá para ser perfeito! Agora,
Baudolino, vou te dizer quem é Deus, ou seja o que ele não é.
(Baudolino, Umberto Eco. p. 488 - 490)
(Baudolino, Umberto Eco. p. 488 - 490)
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