quarta-feira, 27 de junho de 2012

colóquios...



Tiveram outros encontros e vários colóquios. Ipásia falava, e Baudolino gostaria que a sua doutrina fosse amplíssima e infinita, para não deixar de estar suspenso pelas suas palavras. Respondia a todas as perguntas de Baudolino com intrépido candor, sem jamais enrubescer: nada para ela era tema de sórdida proibição, tudo era transparente.
Baudolino, enfim, arriscou-se a perguntar-lhe como as ipásias, havia séculos, se perpetuavam. Ela respondeu que todos os anos a Mãe escolhia algumas dentre elas que deveriam procriar, e as acompanhava até os fecundadores. Ipásia fora reticente a respeito, naturalmente jamais os vira, tampouco vira as ipásias consagradas no rito. Eram levadas a um lugar de noite; bebiam uma poção que as inebriava e as aturdia, eram fecundadas, e depois voltavam para sua comunidade, e aquelas que ficavam grávidas eram cuidadas pelas companheiras até o parto: se o fruto das suas entranhas fosse macho, era devolvido aos fecundadores, que o educariam para ser como eles, se fosse fêmea ficava na comunidade e crescia como uma ipásia.
A união carnal, disse Ipásia, tal como fazem os animais, que não possuem uma alma, é apenas um modo de multiplicar o erro da criação. As ipásias que são enviadas para os fecundadores aceitam essa humilhação somente porque temos que continuar existindo, para redimir o mundo daquele erro. Quem de nós sofreu a fecundação não lembra nada daquele ato que, se não tivesse sido realizado, como se fora um sacrifício, teria alterado a nossa apatia...
O que é apatia?
Aquilo em que cada ipásia vive e se sente feliz por viver.
Por que o erro da criação?
Mas Baudolino, dizia ela rindo com cândida surpresa, achas que o mundo é perfeito? Olha para esta flor, olha para a delicadeza do caule, olha esta espécie de olho poroso que triunfa ao centro, olha como suas pétalas são todas iguais, e um pouco arqueadas para colher o orvalho pela manhã como uma concha, olha a felicidade com a qual se oferece a este inseto que está sugando sua seiva... Não é lindo?
É lindo, realmente. Mas justo por isso, não é bom que seja lindo? Não é esse o milagre divino?
Baudolino, amanhã de manhã esta flor estará morta, e daqui a dois dias será apenas putrefação. Vem comigo. Levou-o para o mato, mostrando-lhe um cogumelo de cúpula vermelha listrado de chamas amarelas.
É lindo, disse.
É lindo.
É venenoso. Quem comer morrerá. Pode parecer perfeita uma criação na qual a morte está à espreita? Sabes que morrerei também, um dia, e que também serei putrefação, se não me consagrasse à redenção de Deus?
A redenção de Deus? Explica-me...
Acaso não serás também um cristão, Baudolino, como os monstros de Pndapetzim? Os cristãos que mataram Ipásia acreditavam numa divindade cruel que criara o mundo, e com ele a morte, o sofrimento e, pior do que sofrimento físico, o mal da alma. Os seres criados são capazes de odiar, de matar, de fazer sofrer os próprios semelhantes. Não acreditarás que um Deus justo tenha destinado seus filhos a esta miséria...
Mas os homens injustos fazem essas coisas, e Deus os castiga, salvando os bons.
Mas então por que esse Deus nos criou, para depois expor-nos ao risco da perdição?
Mas porque o bem supremo é a liberdade de fazer o bem e o mal e, para dar a seus filhos semelhante bem, Deus deve aceitar que alguns façam mau uso dele.
Por que dizes que a liberdade é um bem?
Porque se a subtraem de ti, se te acorrentam, se não te deixam fazer o que desejas, sofres, e então a falta da liberdade é um mal.
Acaso podes girar tua cabeça de modo que vejas o que está atrás de ti, mas girá-la de verdade, a ponto de poderes ver as tuas costas? Podes entrar naquele lago e permanecer lá embaixo até a noite, mas digo ali embaixo, sem nunca por a cabeça pra fora? Falava e ria.
Não, porque se tentasse girar completamente a cabeça quebraria o pescoço e se ficasse debaixo d’água a água me impediria de respirar. Deus criou-me com estes limites para impedir que eu causasse mal a mim mesma.
Mas dizes que tirou algumas liberdades para teu bem, não é verdade?
Ele as tirou para que eu não sofra.
Então por que te deu a liberdade de escolher entre o bem e o mal, de modo que corres o risco depois de sofrer os castigos eternos?
Deus nos deu a liberdade pensando que a usaríamos bem. Mas houve a rebelião dos anjos, que introduziu o mal no mundo, e foi a serpente que tentou Eva, razão pela qual sofremos todos o pecado original. Não é culpa de Deus.
E quem criou os anjos e a serpente?
Deus, certamente, mas antes que se rebelassem eram bons como ele os fizera.
Então o mal não foi criado por eles?
Não, eles o cometeram, mas existia antes, como possibilidade de rebelar-se contra Deus.
Portanto, o mal foi criado por Deus?
Ipásia, és inteligente, sensível, perspicaz, e sabes conduzir uma diputatio muito melhor do que eu, que estudei em Paris, mas não me digas estas coisas do bom Deus. Ele não pode querer o mal!
Claro que não, um Deus que quer o mal seria o contrário de Deus.
E então?
E então, Deus encontrou o mal a seu lado, sem o desejar, como a parte obscura de si mesmo.
Mas Deus é o ser perfeitíssimo!
Certo, Baudolino, Deus é o que mais de perfeito pode existir, mas se soubesses o trabalho que dá para ser perfeito! Agora, Baudolino, vou te dizer quem é Deus, ou seja o que ele não é.

(Baudolino, Umberto Eco. p. 488 - 490)

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