domingo, 1 de julho de 2012

o que Deus não é...



“Deus é único e totalmente perfeito que não se parece com nenhuma das coisas que existem; não o podes descrever usando a tua inteligência humana, como se fosse alguém que se deixa levar pela ira, se és mau, ou que se ocupa de ti por bondade, alguém que tenha boca, orelhas rosto, asas, ou que seja espírito, pai ou filho, nem mesmo de si próprio. Do Único não podes dizer que existe ou que não existe, tudo abrange mas não é nada; podes nomeá-lo apenas por meio da dessemelhança, porque é inútil chama-lo Bondade, Beleza, Sabedoria, Amabilidade, Potência, Justiça, seria o mesmo que chama-lo Urso, Pantera, Serpente, Dragão ou Grifo, pois, não importa o que disseres, nunca poderás exprimi-lo. Deus não é corpo, figura ou forma, não tem quantidade, qualidade, peso ou leveza, não vê, não ouve, não conhece desordem ou perturbação, não é alma, inteligência, imaginação, opinião, pensamento, palavra, número, ordem, grandeza, não é igualdade nem desigualdade, não é tempo nem eternidade, é uma vontade sem objetivo; procura entender Baudolino, Deus é uma lâmpada sem chama, uma chama sem fogo, um fogo sem calor, uma luz escura, um rumor silencioso, um relâmpago sem rumo, uma escuridão luminosíssima, um raio da própria treva, um círculo que se expande contraindo-se no próprio centro, uma multiplicidade solitária, é... é...” Hesitou para encontrar um exemplo que convencesse a ambos, ela, a mestra, e ele, o aluno. “É um espaço que não existe, no qual tu e eu somos a mesma coisa, como hoje nesse tempo que não passa.”
Uma leve chama passou-lhe pelo rosto. Calou-se, assustada por aquele exemplo incongruente, mas como julgar incongruente qualquer adição a uma lista de incongruências?
Baudolino sentiu a mesma chama que lhe atravessava o peito, mas temeu pelo embaraço e ficou paralisado, sem permitir que um só músculo de seu rosto traísse os impulsos do coração, ou que a sua voz tremesse, e perguntou com teológica firmeza: “Mas e a criação? O mal?”
O rosto de Ipásia retomou a sua rósea palidez: “Mas então o Único, por causa de sua perfeição, por generosidade de si mesmo tende a difundir-se, a dilatar-se em esferas cada vez mais amplas da própria plenitude, é como uma vela que é vítima da luz que propaga, quanto mais ilumina mais se desfaz. Aí está, Deus se liquefaz nas sombras de si mesmo, torna-se uma multidão de divindades mensageiras, Éons que possuem grande parte de sua potência, mas num modo bem mais fraco. São tantos deuses, demônios, Arcontes, Tiranos, Forças, Centelhas, Astros, aqueles mesmos que os cristãos chamam de anjos ou arcanjos... Mas não foram criados pelo Único, são a sua emanação.
Emanação?
Vês aquele pássaro? Mais cedo ou mais tarde irá gerar outro pássaro por meio de um ovo, como uma ipásia pode gerar um filho de seu ventre. Mas, uma vez gerada, a criatura, ipásia ou passarinho, vive por conta própria, mesmo que sua mãe morra. Pois muito bem, pensa agora no fogo. O fogo não gera calor, emana. O calor é a mesma coisa que o fogo, se apagasses o fogo cessaria também o calor. O calor do fogo é fortíssimo onde ele nasce, e se torna cada vez mais fraco à medida que a chama se torna fumaça. Assim acontece com Deus. À medida que se expande para longe do próprio centro obscuro, de alguma forma perde o seu vigor, e o perde cada vez mais até que se torna matéria viçosa e insensível, como a cera sem forma em que se desmancha a vela. O Único não desejaria emanar-se tão longe de si, mas não pode resistir a este seu desintegrar-se até a multiplicidade e à desordem.
E esse teu Deus, não consegue dissolver o mal... que se forma a seu redor?
Oh sim, ele poderia. O Único procura reabsorver continuamente essa espécie de sopro, que pode se tornar veneno, e por setenta vezes sete milhões de anos conseguiu continuamente fazer voltar ao nada os seus resíduos. A vida de Deus era uma respiração regular, ele respirava sem esforço. Assim, ouve. Aspirava o ar fazendo vibrar suas delicadas narinas, depois soltava o ar pela boca. Um dia porém, não conseguiu controlar uma de suas potências intermediárias, que nós chamamos o Demiurgo, e que é talvez Sabaoth ou Ildabaoth, o falso deus dos cristãos. Essa imitação de Deus, por erro, por orgulho, por insipiência criou o tempo, onde antes havia apenas a eternidade. O tempo é uma eternidade gagueja, compreendes? E com o tempo criou o fogo, que transmite calor, mas corre também o risco de queimar tudo, a água, que tira a sede, mas que também afoga, a terra, que nutre as ervas, mas que pode provocar avalanche e sufocá-las, o ar que nos permite respirar, mas que pode se tornar furacão... Errou tudo, pobre Demiurgo. Fez o Sol, que dá luz, mas pode secar os prados, a lua, que não consegue dominar a noite além de alguns poucos dias, e que depois míngua e morre, os outros corpos celestes, que são esplêndidos, mas que podem emitir influxos nefastos, e depois seres dotados de inteligência, mas incapazes de compreender os grandes mistérios, os animais, que às vezes são fiéis e outras vezes nos ameaçam, os vegetais, que alimentam mas que têm vida muito breve, os minerais, sem vida, sem alma, sem inteligência, condenados a não entender nada. O Demiurgo era como um menino, que se lambuza com a lama para imitar a beleza de um unicórnio, e dele acaba saindo algo que se parece com um rato!
Então o mundo é uma doença de Deus?
Se és perfeito, não podes emanar, se emanas adoeces. E depois procura entender que Deus, na sua plenitude, é também o lugar, ou o não-lugar, no qual os opostos se confundem, não?
Os opostos?
Sim, nós experimentamos frio e calor, a luz e a escuridão, e todas aquelas coisas que são contrárias umas às outras. Às vezes o frio nos desagrada, e parece um mal comparado ao calor, mas às vezes faz muito calor, e desejamos o frescor. Somos nós que, diante dos opostos, acreditamos, conforme o nosso desejo, e a nossa paixão, que um deles seja o bem e o outro, o mal. Ora, em Deus os opostos se unem e encontram recíproca harmonia. Mas quando Deus começa a se emanar, não consegue mais controlar a harmonia dos opostos, e estes se quebram e lutam uns contra os outros. O Demiurgo perdeu o controle dos opostos, e criou um mundo onde o silêncio e o ruído, o sim e o não, um bem combate com outro bem. Isto é o que percebemos como mal.”
Tomada de entusiasmo, mexia as mãos como se fosse uma menina que, ao falar de um rato, imita-lhe as formas, ou nomeando um temporal desenha redemoinhos no ar.
“Falas do erro da criação, Ipásia, e do mal, mas como se não te dissesse respeito, e vives neste bosque como se tudo fosse belo como tu.
Mas se também o mal vem de Deus, haverá ainda algum bem no mal. Estás me ouvindo, porque és um homem, e os homens não estão acostumados a pensar da maneira certa sobre tudo que existe.
Eu sabia, até eu penso mal.
Não, apenas pensas. E pensar não é suficiente, não é essa a maneira certa. Agora procura imaginar uma nascente que não tenha nenhum princípio e que se espalhe por mil rios, sem jamais secar. A fonte permanece sempre calma, fresca e límpida, enquanto os rios correm para pontos diversos, misturam-se à areia, estreitam-se entre as rochas e tossem estrangulados, às vezes secam. Os rios sofrem muito, sabes? E no entanto até mesmo aquela dos rios e da torrente mais lamacenta é água, e se origina da mesma fonte deste lago. Este lago sofre menos que um rio, pois que em sua limpidez recorda melhor a nascente de que se originou, um charco cheio de insetos sofre mais do que um lago e do que uma corrente. Mas de qualquer modo todos sofrem, porque gostariam de voltar para a sua origem e esqueceram como se faz."
Ipásia deu o braço a Baudolino, e fez com que se virasse para o bosque. Nisso a sua cabeça aproximou-se da dele, e ele sentiu o aroma vegetal daquela cabeleira.
"Olha aquela árvore. O que se espalha dentro dela, das raízes até a última folha, é a mesma vida. Mas as raízes reforçam-se na terra, o tronco se fortalece e sobrevive a todas as estações, enquanto os ramos tendem a secar e a se despedaçar, as folhas duram alguns poucos meses e depois caem, os rebentos vivem algumas semanas. O mal maior está nas folhas e não no tronco. A árvore é uma, mas sofre quando cresce porque se transforma em muitas e ao se multiplicar se enfraquece.
Mas as folhas são belas, tu mesma desfrutas a sua sombra...
Vês que também podes tornar-se sábio, Baudolino? Se não houvesse essas folhas, não poderíamos estar sentados falando de Deus, se não houvesse o bosque jamais nos teríamos encontrado, e isso seria talvez o maior dos males.
Mas então explica-me, como pode muitos serem bons, pelo menos em certa medida, se são uma doença do Único?
Vês que ainda podes tornar-te sábio, Baudolino? Disseste em certa medida. Apesar do erro, uma parte do Único permaneceu em cada um de nós, criaturas pensantes, e também em cada uma das outras criaturas, dos animais aos corpos mortos. Tudo o que nos circunda é habitado por deuses, as plantas, as sementes, as flores, as raízes, as fontes, cada um deles, embora sofrendo por ser uma péssima imitação do pensamento de Deus, não quereria mais do que reunir-se com ele. Devemos encontrar a harmonia entre os opostos, devemos ajudar os deuses, devemos reavivar essas centelhas, essas lembranças do Único, que jazem ainda sepultadas em nossa alma e nas próprias coisas."

(Baudolino, Umberto Eco. p. 491 – 496)

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