segunda-feira, 25 de junho de 2012

Ipásia...


"Precisei de alguns dias, senhor Nicetas, para compreender quem eram realmente as ipásias...
Porque imagino que vos encontrastes outras vezes.
Todos os dias, ou quase. O fato de que eu não pudesse mais deixar de vê-la e de ouvi-la, não deveria surpreender, mas me surpreendia, e me dava um orgulho imenso perceber que ela também estava feliz de me ver e ouvir. Eu, eu... voltava a ser como um menino que procura o seio, e quando a mãe está ausente, chora porque tem medo de que ela não volte mais.
O mesmo acontece com os cães e seus donos. Mas essa história das ipásias deixou-me curioso. Porque deves saber talvez, ou não sabes, que Ipásia viveu realmente, mesmo que a menos de mil e tantos anos, mas há quase oito séculos, viveu em Alexandria do Egito, quando o império era governado por Teodósio e Arcádio. Era realmente, como dizia, uma mulher de grande saber, versada em filosofia, matemática, astronomia, e os próprios homens ficavam suspensos com suas palavras. Enquanto a nossa santa religião já triunfava em todos os territórios do império, havia alguns obstinados que procuravam manter vivo o pensamento dos filósofos pagãos, como o divino Platão, e não nego que fizessem bem, transmitindo também a nós cristãos aquele seu saber, que de outra forma estaria perdido. E, todavia, um dos maiores cristãos de seu tempo, e que depois se tornou um santo da igreja, Cirilo, homem de grande fé, mas também de grande intransigência, via o ensinamento de Ipásia como contrário aos Evangelhos, e desencadeou contra ela uma multidão de cristãos ignorantes e ferozes, que não sabiam o que ela pregava, mas já a consideravam, segundo o testemunho de Cirilo e de outros, mentirosa e dissoluta. Foi talvez caluniada, embora seja também verdade que mulheres não deveriam interferir em questões divinas. Em, suma, arrastaram-na para o templo, despiram-na, mataram-na e despedaçaram seu corpo, usando cacos cortantes de vasos quebrados, depois jogaram na fogueira seu cadáver... Surgiram muitas lendas a seu respeito. Dizem que era belíssima, mas que se consagrou à virgindade. Que uma vez um de seus jovens discípulos se apaixonou loucamente por ela, e ela mostrou-lhe um pano com sangue, dizendo que era somente aquilo o seu objeto, não a beleza como tal... Na realidade, ninguém jamais soube com certeza o que ela ensinava. Perderam-se todos os seus escritos, quem ouviu o que ela falou já estava morto, ou buscara esquecer o que ouvira. Tudo o que dela sabemos chegou até nós pelos santos padres que a condenaram  e, honestamente, como escritor de crônicas e Histórias, costumo não dar muita fé às palavras que um inimigo põe na boca de seu inimigo.”

(fragmento de Baudolino, Umberto Eco. p. 486 - 487)

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