"Precisei de alguns dias, senhor Nicetas, para compreender quem eram
realmente as ipásias...
Porque imagino que vos encontrastes outras vezes.
Todos os dias, ou quase. O fato de que eu não pudesse mais deixar de vê-la e
de ouvi-la, não deveria surpreender, mas me surpreendia, e me dava um orgulho
imenso perceber que ela também estava feliz de me ver e ouvir. Eu, eu...
voltava a ser como um menino que procura o seio, e quando a mãe está ausente,
chora porque tem medo de que ela não volte mais.
O mesmo acontece com os cães e seus donos. Mas essa história das ipásias
deixou-me curioso. Porque deves saber talvez, ou não sabes, que Ipásia viveu
realmente, mesmo que a menos de mil e tantos anos, mas há quase oito séculos,
viveu em Alexandria do Egito, quando o império era governado por Teodósio e
Arcádio. Era realmente, como dizia, uma mulher de grande saber, versada em
filosofia, matemática, astronomia, e os próprios homens ficavam suspensos com
suas palavras. Enquanto a nossa santa religião já triunfava em todos os
territórios do império, havia alguns obstinados que procuravam manter vivo o
pensamento dos filósofos pagãos, como o divino Platão, e não nego que fizessem
bem, transmitindo também a nós cristãos aquele seu saber, que de outra forma
estaria perdido. E, todavia, um dos maiores cristãos de seu tempo, e que depois
se tornou um santo da igreja, Cirilo, homem de grande fé, mas também de grande
intransigência, via o ensinamento de Ipásia como contrário aos Evangelhos, e
desencadeou contra ela uma multidão de cristãos ignorantes e ferozes, que não
sabiam o que ela pregava, mas já a consideravam, segundo o testemunho de Cirilo
e de outros, mentirosa e dissoluta. Foi talvez caluniada, embora seja também
verdade que mulheres não deveriam interferir em questões divinas. Em, suma,
arrastaram-na para o templo, despiram-na, mataram-na e despedaçaram seu corpo,
usando cacos cortantes de vasos quebrados, depois jogaram na fogueira seu cadáver...
Surgiram muitas lendas a seu respeito. Dizem que era belíssima, mas que se
consagrou à virgindade. Que uma vez um de seus jovens discípulos se apaixonou
loucamente por ela, e ela mostrou-lhe um pano com sangue, dizendo que era
somente aquilo o seu objeto, não a beleza como tal... Na realidade, ninguém
jamais soube com certeza o que ela ensinava. Perderam-se todos os seus
escritos, quem ouviu o que ela falou já estava morto, ou buscara esquecer o que
ouvira. Tudo o que dela sabemos chegou até nós pelos santos padres que a
condenaram e, honestamente, como
escritor de crônicas e Histórias, costumo não dar muita fé às palavras que um
inimigo põe na boca de seu inimigo.”
(fragmento de Baudolino, Umberto Eco. p. 486 - 487)
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