quinta-feira, 25 de abril de 2013

Benjamin dando sentido às histórias...

Numa entrevista para o The Comics Journal de janeiro de 1993, Neil Gaiman responde porque os escritores ingleses renovaram os quadrinhos do mainstream americano. Ele argumenta que os roteiristas americanos cresceram lendo quadrinhos, e que isso já acontecia a algumas gerações. Os ingleses cresceram com literatura europeia canônica. A invasão bretã trouxe o frescor da tradição literária e mudou definitivamente o gênero.
De Homero á tradição oral judaica, dos Evangelhos a Kafka e Asimov, contar e recontar histórias é parte essencial da experiência humana. Para Walter Benjamin (um dos mais importantes intelectuais da primeira metade do século XX), olhar os fragmentos da história e juntá-los anarquicamente nos permite ver o que estava oculto. Só o presente  é capaz de despertar significados adormecidos.

Em SANDMAN 22 (parte do arco Estação das Brumas), Lúcifer decide expulsar todos os demônios e as almas do inferno. Fecha todas as passagens e entrega ao senhor dos sonhos a chave da única porta que resta.
Antes da sua segunda queda, Lúcifer Estrela da Manhã pede para que Morpheus corte suas asas. Em seguida ele aparece numa praia na Austrália onde tem uma conversa com um Jó moderno.
De posse da chave, o senhor dos sonhos passa a ser o responsável pelo inferno e por decidir quem deve ficar com esse território. Vários representantes de religiões antigas aparecem para presentear Morpheus em troca da chave, enquanto Remiel e Duma, dois anjos do paraíso, observam tudo.
No fim os dois anjos são escolhidos por Deus para serem os novos administradores do inferno, mas para isso tem que “cair”, não podem nunca mais voltar ao paraíso. É o fim do bem contra o mal. A administração do inferno passa a ser oficialmente feita pelo paraíso, e a punição passa a ter uma função educativa.

Essa mudança política que faz com que o inferno deixe de ser um território livre, e passe a ser um campo de correção. Essa mediação feita na terra do sonho. O desejo secreto de Lúcifer de arruinar Morpheus ao entregar-lhe a chave do inferno. Isso é literatura de alta qualidade, isso olha pra trás e recria o passado, como só o presente pode fazer.
Walter Benjamin também usa a imagem de um anjo numa analogia a marcha do progresso. Diz ele que o anjo da história tem o rosto dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
O anjo de Benjamin vive o presente, entre o passado que ele não pode mudar, e o futuro que ele não vê. O progresso o impele sempre pra frente, e mesmo que ele não saiba pra onde esta indo, o que o guia são as ruínas que se amontoam na sua frente. Essa é também a trajetória de Morpheus que é  o senhor do reino do sonhar.  Benjamin diz – “Uma época sonha a seguinte, e ao sonhá-la, força-a a despertar”.

Todo SANDMAN é permeado por referencias históricas, filosóficas, literárias. As camadas são muitas e só a leitura e releitura podem desvendar. Por isso é um cânone moderno. Poucas obras literárias tem esse grau de complexidade  e essa capacidade de nos atingir em vários níveis.

In.: http://quadrinheiros.wordpress.com/2012/06/20/walter-benjamin-e-os-anjos-de-neil-gaiman/

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