“Deus é único e totalmente
perfeito que não se parece com nenhuma das coisas que existem; não o podes
descrever usando a tua inteligência humana, como se fosse alguém que se deixa
levar pela ira, se és mau, ou que se ocupa de ti por bondade, alguém que tenha
boca, orelhas rosto, asas, ou que seja espírito, pai ou filho, nem mesmo de si
próprio. Do Único não podes dizer que existe ou que não existe, tudo abrange
mas não é nada; podes nomeá-lo apenas por meio da dessemelhança, porque é
inútil chama-lo Bondade, Beleza, Sabedoria, Amabilidade, Potência, Justiça,
seria o mesmo que chama-lo Urso, Pantera, Serpente, Dragão ou Grifo, pois, não
importa o que disseres, nunca poderás exprimi-lo. Deus não é corpo, figura ou
forma, não tem quantidade, qualidade, peso ou leveza, não vê, não ouve, não
conhece desordem ou perturbação, não é alma, inteligência, imaginação, opinião,
pensamento, palavra, número, ordem, grandeza, não é igualdade nem desigualdade,
não é tempo nem eternidade, é uma vontade sem objetivo; procura entender
Baudolino, Deus é uma lâmpada sem chama, uma chama sem fogo, um fogo sem calor,
uma luz escura, um rumor silencioso, um relâmpago sem rumo, uma escuridão
luminosíssima, um raio da própria treva, um círculo que se expande
contraindo-se no próprio centro, uma multiplicidade solitária, é... é...”
Hesitou para encontrar um exemplo que convencesse a ambos, ela, a mestra, e
ele, o aluno. “É um espaço que não existe, no qual tu e eu somos a mesma coisa,
como hoje nesse tempo que não passa.”
Uma leve chama passou-lhe pelo
rosto. Calou-se, assustada por aquele exemplo incongruente, mas como julgar
incongruente qualquer adição a uma lista de incongruências?
Baudolino sentiu a mesma chama
que lhe atravessava o peito, mas temeu pelo embaraço e ficou paralisado, sem
permitir que um só músculo de seu rosto traísse os impulsos do coração, ou que
a sua voz tremesse, e perguntou com teológica firmeza: “Mas e a criação? O
mal?”
O rosto de Ipásia retomou a sua
rósea palidez: “Mas então o Único, por causa de sua perfeição, por generosidade
de si mesmo tende a difundir-se, a dilatar-se em esferas cada vez mais amplas
da própria plenitude, é como uma vela que é vítima da luz que propaga, quanto
mais ilumina mais se desfaz. Aí está, Deus se liquefaz nas sombras de si mesmo,
torna-se uma multidão de divindades mensageiras, Éons que possuem grande parte
de sua potência, mas num modo bem mais fraco. São tantos deuses, demônios,
Arcontes, Tiranos, Forças, Centelhas, Astros, aqueles mesmos que os cristãos
chamam de anjos ou arcanjos... Mas não foram criados pelo Único, são a sua
emanação.
Emanação?
Vês aquele pássaro? Mais cedo ou
mais tarde irá gerar outro pássaro por meio de um ovo, como uma ipásia pode
gerar um filho de seu ventre. Mas, uma vez gerada, a criatura, ipásia ou passarinho,
vive por conta própria, mesmo que sua mãe morra. Pois muito bem, pensa agora no
fogo. O fogo não gera calor, emana. O calor é a mesma coisa que o fogo, se
apagasses o fogo cessaria também o calor. O calor do fogo é fortíssimo onde ele
nasce, e se torna cada vez mais fraco à medida que a chama se torna fumaça.
Assim acontece com Deus. À medida que se expande para longe do próprio centro
obscuro, de alguma forma perde o seu vigor, e o perde cada vez mais até que se
torna matéria viçosa e insensível, como a cera sem forma em que se desmancha a
vela. O Único não desejaria emanar-se tão longe de si, mas não pode resistir a
este seu desintegrar-se até a multiplicidade e à desordem.
E esse teu Deus, não consegue
dissolver o mal... que se forma a seu redor?
Oh sim, ele poderia. O Único
procura reabsorver continuamente essa espécie de sopro, que pode se tornar
veneno, e por setenta vezes sete milhões de anos conseguiu continuamente fazer
voltar ao nada os seus resíduos. A vida de Deus era uma respiração regular, ele
respirava sem esforço. Assim, ouve. Aspirava o ar fazendo vibrar suas delicadas
narinas, depois soltava o ar pela boca. Um dia porém, não conseguiu controlar
uma de suas potências intermediárias, que nós chamamos o Demiurgo, e que é
talvez Sabaoth ou Ildabaoth, o falso deus dos cristãos. Essa imitação de Deus,
por erro, por orgulho, por insipiência criou o tempo, onde antes havia apenas a
eternidade. O tempo é uma eternidade gagueja, compreendes? E com o tempo criou
o fogo, que transmite calor, mas corre também o risco de queimar tudo, a água,
que tira a sede, mas que também afoga, a terra, que nutre as ervas, mas que
pode provocar avalanche e sufocá-las, o ar que nos permite respirar, mas que
pode se tornar furacão... Errou tudo, pobre Demiurgo. Fez o Sol, que dá luz,
mas pode secar os prados, a lua, que não consegue dominar a noite além de
alguns poucos dias, e que depois míngua e morre, os outros corpos celestes, que
são esplêndidos, mas que podem emitir influxos nefastos, e depois seres dotados
de inteligência, mas incapazes de compreender os grandes mistérios, os animais,
que às vezes são fiéis e outras vezes nos ameaçam, os vegetais, que alimentam
mas que têm vida muito breve, os minerais, sem vida, sem alma, sem
inteligência, condenados a não entender nada. O Demiurgo era como um menino,
que se lambuza com a lama para imitar a beleza de um unicórnio, e dele acaba
saindo algo que se parece com um rato!
Então o mundo é uma doença de
Deus?
Se és perfeito, não podes emanar,
se emanas adoeces. E depois procura entender que Deus, na sua plenitude, é
também o lugar, ou o não-lugar, no qual os opostos se confundem, não?
Os opostos?
Sim, nós experimentamos frio e
calor, a luz e a escuridão, e todas aquelas coisas que são contrárias umas às
outras. Às vezes o frio nos desagrada, e parece um mal comparado ao calor, mas
às vezes faz muito calor, e desejamos o frescor. Somos nós que, diante dos
opostos, acreditamos, conforme o nosso desejo, e a nossa paixão, que um deles
seja o bem e o outro, o mal. Ora, em Deus os opostos se unem e encontram
recíproca harmonia. Mas quando Deus começa a se emanar, não consegue mais
controlar a harmonia dos opostos, e estes se quebram e lutam uns contra os
outros. O Demiurgo perdeu o controle dos opostos, e criou um mundo onde o silêncio
e o ruído, o sim e o não, um bem combate com outro bem. Isto é o que percebemos
como mal.”
Tomada de entusiasmo, mexia as
mãos como se fosse uma menina que, ao falar de um rato, imita-lhe as formas, ou
nomeando um temporal desenha redemoinhos no ar.
“Falas do erro da criação,
Ipásia, e do mal, mas como se não te dissesse respeito, e vives neste bosque
como se tudo fosse belo como tu.
Mas se também o mal vem de Deus,
haverá ainda algum bem no mal. Estás me ouvindo, porque és um homem, e os
homens não estão acostumados a pensar da maneira certa sobre tudo que existe.
Eu sabia, até eu penso mal.
Não, apenas pensas. E pensar não
é suficiente, não é essa a maneira certa. Agora procura imaginar uma nascente
que não tenha nenhum princípio e que se espalhe por mil rios, sem jamais secar.
A fonte permanece sempre calma, fresca e límpida, enquanto os rios correm para
pontos diversos, misturam-se à areia, estreitam-se entre as rochas e tossem
estrangulados, às vezes secam. Os rios sofrem muito, sabes? E no entanto até
mesmo aquela dos rios e da torrente mais lamacenta é água, e se origina da
mesma fonte deste lago. Este lago sofre menos que um rio, pois que em sua
limpidez recorda melhor a nascente de que se originou, um charco cheio de
insetos sofre mais do que um lago e do que uma corrente. Mas de qualquer modo
todos sofrem, porque gostariam de voltar para a sua origem e esqueceram como se
faz."
Ipásia deu o braço a Baudolino, e
fez com que se virasse para o bosque. Nisso a sua cabeça aproximou-se da dele,
e ele sentiu o aroma vegetal daquela cabeleira.
"Olha aquela árvore. O que se
espalha dentro dela, das raízes até a última folha, é a mesma vida. Mas as
raízes reforçam-se na terra, o tronco se fortalece e sobrevive a todas as
estações, enquanto os ramos tendem a secar e a se despedaçar, as folhas duram
alguns poucos meses e depois caem, os rebentos vivem algumas semanas. O mal
maior está nas folhas e não no tronco. A árvore é uma, mas sofre quando cresce
porque se transforma em muitas e ao se multiplicar se enfraquece.
Mas as folhas são belas, tu mesma
desfrutas a sua sombra...
Vês que também podes tornar-se
sábio, Baudolino? Se não houvesse essas folhas, não poderíamos estar sentados
falando de Deus, se não houvesse o bosque jamais nos teríamos encontrado, e isso
seria talvez o maior dos males.
Mas então explica-me, como pode
muitos serem bons, pelo menos em certa medida, se são uma doença do Único?
Vês que ainda podes tornar-te
sábio, Baudolino? Disseste em certa medida. Apesar do erro, uma parte do Único
permaneceu em cada um de nós, criaturas pensantes, e também em cada uma das
outras criaturas, dos animais aos corpos mortos. Tudo o que nos circunda é
habitado por deuses, as plantas, as sementes, as flores, as raízes, as fontes,
cada um deles, embora sofrendo por ser uma péssima imitação do pensamento de
Deus, não quereria mais do que reunir-se com ele. Devemos encontrar a harmonia
entre os opostos, devemos ajudar os deuses, devemos reavivar essas centelhas,
essas lembranças do Único, que jazem ainda sepultadas em nossa alma e nas
próprias coisas."
(Baudolino, Umberto Eco. p. 491 – 496)